Remuneração do Médico em Sobreaviso: Direitos e Particularidades no Direito do Trabalho
- Ricardo Romano
- 8 de set.
- 10 min de leitura

Introdução;
A prestação de serviços médicos em regime de sobreaviso é uma realidade comum nos hospitais e serviços de saúde brasileiros, especialmente em unidades de emergência e pronto-atendimento. Este regime de trabalho, embora originalmente previsto para ferroviários, foi estendido pela jurisprudência trabalhista aos profissionais de saúde, trazendo consigo importantes implicações jurídicas e econômicas tanto para os médicos quanto para as instituições empregadoras.
O presente artigo analisa as particularidades da remuneração do médico em sobreaviso, explorando a base legal, a evolução jurisprudencial e os requisitos necessários para a caracterização desse regime especial de trabalho, fornecendo um panorama atualizado sobre o tema à luz das mais recentes decisões do Tribunal Superior do Trabalho.
Base Legal e Conceito Jurídico;
2.1. O Artigo 244 da CLT;
O regime de sobreaviso encontra sua fundamentação legal no artigo 244, §2º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que estabelece:
"Considera-se de sobreaviso o empregado efetivo que permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço. Cada escala de sobreaviso será, no máximo, de 24 horas. As horas de sobreaviso, para todos os efeitos, serão contadas à razão de 1/3 (um terço) do salário normal."
Embora a norma tenha sido originalmente concebida para os trabalhadores ferroviários, conforme estabelecido no caput do artigo 244, a jurisprudência trabalhista consolidou o entendimento de que sua aplicação pode ser estendida analogicamente a outras categorias profissionais, incluindo os médicos e demais profissionais de saúde.
2.2. Evolução do Conceito com a Tecnologia;
Com o avanço tecnológico e a popularização dos meios de comunicação móvel, o conceito tradicional de sobreaviso, que exigia a permanência do trabalhador em sua residência, passou por significativa transformação. A Lei 12.551 afeta diretamente os casos em que o empregado, depois de encerrada a jornada, fica à disposição para atender um novo serviço para a empresa, conforme destacou o ministro João Oreste Dalazen, então presidente do TST.
A Súmula 428 do TST e Sua Nova Redação;
3.1. Mudança Paradigmática na Jurisprudência;
A Súmula 428 do TST passou por importante reformulação para adequar-se à realidade tecnológica atual. Pelo novo entendimento, o empregado que estiver submetido ao controle do patrão por meio de instrumentos telemáticos e informatizados, aguardando a qualquer momento um chamado para o serviço durante seu período de descanso, tem direito ao adicional de sobreaviso, correspondente a 1/3 da hora normal.
A nova redação estabelece dois importantes princípios:
I - O uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso.
II - Considera-se em sobreaviso o empregado que, à distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso.
3.2. Implicações para os Profissionais Médicos;
Esta mudança jurisprudencial é particularmente relevante para os médicos, que frequentemente utilizam celulares, pagers ou aplicativos de comunicação para atendimento de emergências. A grande mudança nessa Súmula é que não é mais necessário que o empregado permaneça em casa para que se caracterize o sobreaviso, basta o "estado de disponibilidade", em regime de plantão, para que tenha direito ao benefício.
Características do Sobreaviso Médico;
4.1. Requisitos Essenciais;
Para a caracterização do regime de sobreaviso no contexto médico, devem estar presentes os seguintes elementos:
Escala Predeterminada: O médico deve estar formalmente escalado para o período de sobreaviso, com horários definidos e conhecidos previamente;
Disponibilidade Compulsória: O regime de sobreaviso está previsto no artigo 244, § 2º, da CLT para os trabalhadores ferroviários. No entanto, foi estendido pela jurisprudência e pela doutrina a outras categorias, caracterizando-se quando há cerceamento da liberdade do trabalhador de utilizar seu tempo de folga por determinação do empregador;
Possibilidade Real de Chamamento: Deve existir a possibilidade concreta de o médico ser convocado para prestar serviços durante o período de sobreaviso;
Restrição da Liberdade: Embora não seja mais necessária a permanência em casa, o profissional deve ter sua liberdade de locomoção limitada de forma a garantir o pronto atendimento quando chamado.
4.2. Distinção entre Sobreaviso e Plantão Presencial
É fundamental distinguir o regime de sobreaviso do plantão presencial. No plantão, o médico permanece nas dependências do hospital ou clínica, recebendo remuneração integral pelas horas trabalhadas. Já no sobreaviso, o profissional aguarda o chamamento em local de sua escolha, recebendo 1/3 da remuneração normal durante o período de espera.
Remuneração Sobreaviso Médico;
5.1. Cálculo da Remuneração;
A remuneração do médico em sobreaviso segue a regra estabelecida no artigo 244, §2º, da CLT:
Durante a espera: 1/3 (um terço) do valor da hora normal;
Quando acionado: Horas extras integrais pelo tempo efetivamente trabalhado.
Uma vez caracterizado o sobreaviso, o trabalhador tem direito a remuneração de um terço do salário-hora multiplicado pelo número de horas que permaneceu à disposição. Se for acionado, recebe hora extra correspondente ao tempo efetivamente trabalhado.
5.2. Base de Cálculo e Reflexos;
A base de cálculo das horas de sobreaviso deve considerar:
Salário-base do médico;
Gratificações habituais;
Adicionais permanentes (exceto o adicional de periculosidade durante as horas de sobreaviso, conforme Súmula 132, II, do TST).
As horas de sobreaviso, quando pagas com habitualidade, geram reflexos, em caso de médico em regime de CLT, em:
Férias e 1/3 constitucional;
13º salário;
FGTS;
Aviso prévio;
DSR (Descanso Semanal Remunerado).
Jurisprudência Recente e Tendências;
6.1. Posicionamento dos Tribunais Regionais;
Os Tribunais Regionais do Trabalho têm aplicado os novos entendimentos do TST de forma consistente. O TRT-4, ao analisar o caso, definiu que o trabalho em regime de sobreaviso é aquele em que o empregado permanece à inteira disposição do empregador, esperando chamada para o serviço, conforme estabelecido no art. 244, § 2º.
Um aspecto importante destacado pela jurisprudência é que o uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso, sendo necessária a demonstração de que o trabalhador estava efetivamente limitado em sua liberdade durante o período de descanso.
6.2. Temas em Discussão no TST;
O Pleno do Tribunal Superior do Trabalho se reunirá em sessão presencial nesta segunda-feira (8) com 14 temas em pauta para analisar reafirmação de jurisprudência ou afetação para que sejam julgados sob a sistemática dos recursos repetitivos. Entre os temas, está a aplicação analógica do artigo 244, §2º, da CLT (RR 10271-91.2022.5.15.0022), o que pode trazer novos esclarecimentos sobre o sobreaviso médico.
Particularidades do Setor de Saúde;
7.1. Urgências e Emergências;
No contexto hospitalar, o sobreaviso é especialmente comum em setores como:
Unidades de Terapia Intensiva (UTI);
Centros Cirúrgicos;
Pronto-Socorro;
Serviços de Obstetrícia;
Unidades de Trauma.
Nestas áreas, a necessidade de disponibilidade imediata de especialistas justifica a adoção do regime de sobreaviso como forma de garantir a continuidade do atendimento sem onerar excessivamente as instituições com plantões presenciais completos.
7.2. Responsabilidade Técnica e Sobreaviso;
Médicos que exercem função de responsabilidade técnica ou coordenação frequentemente são submetidos ao regime de sobreaviso para resolver questões administrativas urgentes ou intercorrências clínicas que demandem decisões superiores. Nestes casos, aplica-se a mesma regra remuneratória, desde que caracterizados os requisitos do sobreaviso.
7.3. A Problemática do Médico Pessoa Jurídica e o Sobreaviso;
7.3.1. Contexto da Contratação PJ no Setor de Saúde;
A contratação de médicos como pessoa jurídica (PJ) tornou-se prática comum em hospitais e clínicas brasileiras, especialmente após a popularização das cooperativas médicas e empresas individuais de prestação de serviços médicos. Este modelo de contratação, quando legítimo, estabelece uma relação comercial entre duas empresas, sem vínculo empregatício formal.
Contudo, a mera formalização de uma pessoa jurídica não afasta automaticamente o direito ao reconhecimento do vínculo empregatício e, consequentemente, ao pagamento de horas de sobreaviso, quando presentes os elementos caracterizadores da relação de emprego.
7.3.2. Pejotização Fraudulenta e Sobreaviso;
A "pejotização" fraudulenta ocorre quando o hospital exige que o médico constitua uma pessoa jurídica como condição para a contratação, mas mantém sobre ele controle típico de uma relação empregatícia.
Em ambiente hospitalar, os responsáveis pelas diretrizes de trabalho dos profissionais de saúde costumam ser os coordenadores das diversas especialidades médicas, ou de algum departamento, os quais estão subordinados, normalmente, ao diretor-clínico do hospital.
É ele, o coordenador, quem determina previamente a escala de plantões, os horários de início e término do trabalho (inclusive o sobreaviso), quais os pacientes lhe serão encaminhados, o preço das consultas particulares, as normas para a liberação de materiais.
Neste contexto, mesmo que formalmente contratado como PJ, o médico que:
Cumpre escalas predeterminadas de sobreaviso;
Está obrigado a atender chamados do hospital;
Não pode se fazer substituir por outro profissional (pessoalidade);
Recebe ordens diretas sobre como executar seu trabalho;
Tem horários fixos de trabalho determinados pela instituição.
Pode ter reconhecido o vínculo empregatício e, consequentemente, o direito ao pagamento das horas de sobreaviso nos termos do artigo 244, §2º, da CLT.
7.3.3. Jurisprudência sobre Médico PJ e Direitos Trabalhistas;
O Supremo Tribunal Federal tem aplicado entendimento reiterado sobre a matéria, analisando caso a caso a existência real de autonomia na prestação de serviços. O Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, tem reconhecido que através do artigo 9º da CLT, torna-se possível a análise dos casos concretos levados a juízo, sob a ótica do Direito do Trabalho, aplicando-se-lhes suas normas, mesmo diante da criação de sociedades ou cooperativas de trabalho fictícias, como se não existissem.
O artigo 9º da CLT estabelece que: "Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação."
Para a configuração do vínculo laboral e consequente direito ao sobreaviso, bastará a presença dos requisitos legais configuradores da relação trabalhista:
Onerosidade: pagamento pelos serviços prestados;
Não eventualidade: prestação contínua de serviços;
Pessoalidade: impossibilidade de substituição por outro profissional;
Subordinação: cumprimento de ordens e diretrizes do hospital.
7.3.4.Implicações Práticas para o Médico PJ em Sobreaviso;
Quando o médico PJ tem direito ao sobreaviso:
Fraude na contratação PJ, com reconhecimento do vínculo empregatício;
Quando, apesar da formalidade PJ, há subordinação jurídica clara;
Se o médico não tem autonomia real sobre sua agenda e forma de trabalho;
Quando existe obrigatoriedade de cumprimento de escalas de sobreaviso;
Se há punição ou represálias por recusa de chamados.
Quando o médico PJ não tem direito ao sobreaviso:
Verdadeira prestação de serviços autônoma entre empresas;
Liberdade para aceitar ou recusar chamados sem penalização;
Possibilidade de indicar substitutos para atendimento;
Autonomia na definição de horários e forma de prestação dos serviços;
Prestação de serviços para múltiplos hospitais sem exclusividade.
7.3.5. Diferenças Práticas entre CLT e PJ no Sobreaviso;
É importante compreender que o médico verdadeiramente PJ não possui os mesmos direitos trabalhistas do empregado CLT. Quando a contratação PJ é legítima:
Não há obrigação legal de pagamento de sobreaviso;
O médico PJ deve negociar valores e condições diretamente no contrato;
Não existe amparo na CLT para reivindicação de direitos trabalhistas;
A disponibilidade para atendimentos deve ser remunerada conforme negociação.
Por outro lado, quando caracterizada a fraude:
Todos os direitos trabalhistas são devidos, incluindo sobreaviso;
O pagamento segue a regra do artigo 244, §2º, da CLT (1/3 da hora normal);
Há reflexos em férias, 13º salário, FGTS e demais verbas trabalhistas.
7.3.6. Recomendações para Médicos PJ;
Para médicos que atuam como pessoa jurídica mas suspeitam estar em situação de pejotização fraudulenta com regime de sobreaviso:
Documentar a rotina de trabalho: Manter registros detalhados de escalas, ordens recebidas, impossibilidade de recusa de chamados, prints de conversas em grupos de WhatsApp;
Guardar comunicações: E-mails, mensagens de WhatsApp, memorandos e outros documentos que demonstrem subordinação e controle por parte do hospital;
Registrar penalizações: Documentar qualquer represália ou punição por recusa de plantões ou sobreaviso;
Buscar orientação jurídica especializada: A análise do caso concreto por advogado trabalhista é fundamental para avaliar a viabilidade de ação judicial;
Avaliar o custo-benefício: Considerar se a remuneração como PJ compensa a perda de direitos trabalhistas, fazendo um cálculo comparativo;
Negociar contratualmente: Se optar por permanecer como PJ legítimo, incluir no contrato de prestação de serviços cláusulas específicas sobre remuneração de sobreaviso.
É importante destacar que o reconhecimento do vínculo empregatício pode retroagir até cinco anos (prazo prescricional trabalhista), garantindo o recebimento de todas as verbas trabalhistas do período, incluindo as horas de sobreaviso não pagas. Contudo, a ação deve ser proposta em até dois anos após o término da prestação de serviços.
Aspectos Práticos e Recomendações;
8.1. Para as Instituições de Saúde;
Formalização das Escalas: Documentar adequadamente as escalas de sobreaviso, com antecedência e clareza sobre os períodos e profissionais envolvidos;
Regulamentação Interna: Estabelecer normas claras sobre o funcionamento do sobreaviso, incluindo tempo de resposta esperado e meios de comunicação;
Controle de Acionamentos: Manter registro detalhado dos chamamentos realizados durante o sobreaviso, incluindo horário de início e fim do atendimento;
Acordo ou Convenção Coletiva: Buscar negociação coletiva para estabelecer regras específicas do setor, respeitando os mínimos legais.
8.2. Para os Profissionais Médicos;
Documentação: Manter registros próprios dos períodos de sobreaviso e acionamentos realizados;
Conhecimento dos Direitos: Estar ciente da diferença entre sobreaviso e simples disponibilidade voluntária;
Negociação Contratual: Ao firmar contrato de trabalho, verificar se as condições do sobreaviso estão adequadamente previstas e remuneradas.
Limites e Proteção ao Trabalhador;
9.1. Duração Máxima;
Conforme estabelecido no artigo 244, §2º, da CLT, cada escala de sobreaviso não pode ultrapassar 24 horas consecutivas. Dispõe a CLT que a escala de sobreaviso não poderá, licitamente, ultrapassar vinte e quatro horas (§ 2º, art. 244). O descumprimento deste limite sujeita o empregador a sanções administrativas, embora a jurisprudência majoritária entenda que não altera a natureza jurídica das horas excedentes.
9.2. Intervalos entre Escalas;
Embora a lei não estabeleça intervalo mínimo entre escalas de sobreaviso, os princípios constitucionais de proteção à saúde e dignidade do trabalhador impõem limites à utilização abusiva deste regime. Convenções coletivas do setor de saúde frequentemente estabelecem intervalos mínimos, garantindo o adequado descanso dos profissionais.
Conclusão;
O regime de sobreaviso representa importante instrumento de organização do trabalho médico, permitindo a manutenção de serviços essenciais de saúde com racionalização de recursos humanos. A evolução jurisprudencial, especialmente com a nova redação da Súmula 428 do TST, trouxe maior clareza e segurança jurídica para a aplicação do instituto aos profissionais de saúde.
Para os médicos, o conhecimento detalhado dos direitos relacionados ao sobreaviso é fundamental para garantir a adequada remuneração pelo tempo em que permanecem à disposição do empregador. Para as instituições de saúde, a correta implementação do regime evita passivos trabalhistas e contribui para a manutenção de relações laborais equilibradas.
A tendência jurisprudencial aponta para o reconhecimento cada vez mais amplo do direito ao adicional de sobreaviso quando presentes os requisitos legais, independentemente do meio tecnológico utilizado para o controle e acionamento do profissional. Permanece, contudo, a necessidade de comprovação da efetiva restrição à liberdade do trabalhador durante o período de disponibilidade.
O diálogo social, através de acordos e convenções coletivas, mostra-se como caminho adequado para estabelecer regras específicas que atendam às peculiaridades do setor de saúde, sempre respeitados os parâmetros mínimos estabelecidos na legislação trabalhista e na jurisprudência consolidada dos tribunais superiores.
Referências Normativas e Jurisprudenciais:
Consolidação das Leis do Trabalho - Decreto-Lei nº 5.452/1943, artigo 244
Lei nº 12.551/2011 - Altera o art. 6º da CLT para equiparar os efeitos jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos
Súmula nº 428 do TST - Sobreaviso. Aplicação analógica do art. 244, § 2º, da CLT
Súmula nº 132, II, do TST - Adicional de periculosidade. Integração
Processo RR 10271-91.2022.5.15.0022 - TST (https://www.tst.jus.br)
Jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho





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