Pejotização dos Profissionais da Saúde: Uma análise jurídica.
- Ricardo Romano
- 12 de set.
- 7 min de leitura

Introdução;
A pejotização dos profissionais da saúde tornou-se uma realidade cada vez mais presente em hospitais, clínicas e laboratórios em todo o Brasil. Este fenômeno, que consiste na contratação de médicos, enfermeiros e demais profissionais da área através de pessoas jurídicas ao invés do regime celetista tradicional, tem gerado intensos debates jurídicos e trabalhistas.
O termo "pejotização" deriva da expressão "pessoa jurídica" (PJ) e representa uma forma de contratação que, quando legítima, pode oferecer maior flexibilidade nas relações de trabalho. Contudo, quando utilizada de forma fraudulenta para mascarar verdadeiras relações de emprego, configura grave violação à legislação trabalhista.
Este artigo analisa os aspectos legais da pejotização na área da saúde, esclarecendo quando esta prática é permitida pela lei e quando caracteriza fraude trabalhista, além de apresentar a jurisprudência mais recente sobre o tema.
O Fenômeno da Pejotização dos Profissionais na Saúde;
2.1. Conceito e Características;
A pejotização na saúde consiste na contratação de profissionais médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e outros especialistas através de contratos de prestação de serviços com pessoas jurídicas, ao invés da tradicional contratação com carteira assinada.
Segundo o renomado doutrinador Maurício Godinho Delgado, a pejotização configura "a utilização do contrato de sociedade como instrumento simulatório, voltado a transparecer, formalmente, uma situação fático-jurídica de natureza civil/comercial, embora ocultando efetiva relação empregatícia".
2.2. Contexto da Saúde Pública e Privada;
No setor público, a pejotização ganhou força especialmente após a implementação das Organizações Sociais (OSs), regulamentadas pela Lei nº 9.637/1998. No Rio de Janeiro, por exemplo, cerca de 40% dos médicos que atuam no serviço público o fazem através de contratos de pessoa jurídica com as OSs.
No setor privado, hospitais e clínicas têm optado por esta modalidade visando redução de custos trabalhistas e maior flexibilidade na gestão de pessoal.
Requisitos Legais para Pejotização Válida;
3.1. Base Legal;
A contratação através de pessoa jurídica encontra respaldo legal no artigo 129 da Lei nº 11.196/2005, que estabelece:
"Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas."
3.2. Requisitos para Legitimidade;
Para que a pejotização seja considerada legítima, é fundamental que NÃO estejam presentes simultaneamente os quatro elementos caracterizadores do vínculo empregatício estabelecidos pelos artigos 2º e 3º da CLT:
Ausência de Pessoalidade: O profissional deve ter autonomia para delegar a execução dos serviços a terceiros (sócios, empregados da PJ, substitutos qualificados);
Ausência de Subordinação: Não deve haver controle hierárquico, imposição de horários rígidos, ordens diretas sobre a forma de execução do trabalho, ou submissão às normas internas da contratante como se fosse empregado;
Ausência de Habitualidade Exclusiva: Os serviços não devem ser prestados de forma contínua e exclusiva, integrando a rotina operacional da empresa como atividade essencial;
Autonomia na Onerosidade: O profissional deve ter liberdade para negociar valores, prazos e condições de pagamento, não recebendo remuneração fixa mensal típica de salário.
3.3. Características da Pejotização Legítima;
Uma relação contratual válida como PJ apresenta as seguintes características:
Autonomia técnica e organizacional: O profissional define métodos de trabalho e possui independência técnica;
Multiplicidade de clientes: Prestação de serviços para mais de uma empresa/instituição;
Estrutura empresarial própria: Possibilidade de ter funcionários, infraestrutura e assumir riscos do negócio;
Liberdade contratual: Poder de negociar cláusulas, valores e condições;
Responsabilidade civil própria: Responder por erros e danos decorrentes dos serviços
Quando a Pejotização é Ilegal: Caracterização do Vínculo Empregatício;
4.1. Os Quatro Pilares do Vínculo Empregatício
A pejotização torna-se fraudulenta quando presentes cumulativamente os elementos da relação de emprego:
1. Pessoalidade
O profissional deve executar pessoalmente os serviços;
Impossibilidade de se fazer substituir por terceiros;
Contratação baseada nas qualidades pessoais do profissional.
2. Subordinação
Cumprimento de horários e escalas determinados pela contratante;
Obediência a ordens e diretrizes da administração hospitalar;
Submissão ao poder disciplinar da empresa;
Controle sobre a forma de execução do trabalho.
3. Habitualidade (Não Eventualidade)
Prestação de serviços de forma contínua e regular;
Integração à atividade normal da empresa;
Expectativa de permanência na relação.
4. Onerosidade
Recebimento de contraprestação pela execução dos serviços;
Pagamento regular e fixo, mesmo que disfarçado de "honorários";
Dependência econômica dos pagamentos da contratante.
4.2. Base Legal: Artigo 9º da CLT;
O artigo 9º da CLT estabelece o fundamento legal para combater a pejotização fraudulenta:
"Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação."
Este dispositivo permite ao Poder Judiciário declarar a nulidade dos contratos de prestação de serviços quando comprovada a intenção de burlar a legislação trabalhista.
4.2. Princípio da Primazia da Realidade;
O Direito do Trabalho adota o princípio da primazia da realidade, segundo o qual a verdade dos fatos prevalece sobre a forma documental. Assim, não importa o que está escrito no contrato de prestação de serviços se, na prática, estão presentes os elementos da relação de emprego.
Jurisprudência sobre Pejotização na Saúde;
5.1. Decisões do Supremo Tribunal Federal (STF);
1ª Turma do STF - Instituto Fernandes Filgueiras (BA)
A 1ª Turma do STF julgou procedente a Reclamação (RCL) 47843, considerando lícita a contratação de médicos como pessoas jurídicas pelo Instituto Fernandes Filgueiras, organização social responsável pela gestão de hospitais públicos na Bahia. O entendimento majoritário foi de que a pejotização é permitida pela legislação brasileira.
2ª Turma do STF - Médico Anestesiologista
A 2ª Turma do STF cassou decisão do TRT-2 que reconhecia vínculo empregatício entre médico anestesiologista contratado via pessoa jurídica e grupo hospitalar. O entendimento prevalecente foi de que a pejotização é uma forma lícita de terceirização.
5.2. Decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST);
Incidente de Recurso Repetitivo - Tema 30
O TST está analisando através de incidente de recurso repetitivo a seguinte questão: "É válida a contratação de trabalhador que constitui pessoa jurídica para a realização de função habitualmente exercida por empregados no âmbito da empresa contratante ('pejotização')? E a conversão de relação de emprego em relação pejotizada?"
Jurisprudência Consolidada TST
Ementa representativa:
"VÍNCULO DE EMPREGO. PEJOTIZAÇÃO. MATÉRIA FÁTICA. FRAUDE. O Tribunal a quo concluiu, com amparo no conjunto fático-probatório dos autos, ser incontroversa a prestação de serviços do autor, salientando que a criação de pessoa jurídica configurou tentativa de fraude à legislação trabalhista, uma vez que tinha o objetivo de mascarar a continuidade do vínculo empregatício entre o autor e a reclamada."
5.3. Decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho
TRT-1 (Rio de Janeiro);
Ementa:
"VÍNCULO DE EMPREGO. PEJOTIZAÇÃO – Quando o trabalhador atua na atividade fim da empresa contratante, com pessoalidade, subordinação e não eventualidade, ainda que por intermédio de 'pessoa jurídica', pejotização, condição imposta para obtenção do emprego, resta transparente a fraude – inteligência do artigo 9º do Compêndio Celetista, impondo, de pronto, o reconhecimento do vínculo de emprego entre as partes."
Situações Específicas na Área da Saúde;
6.1. Organizações Sociais (OSs);
As OSs têm sido grandes utilizadoras da pejotização médica. Contudo, existem alternativas legais como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), que contrata profissionais via regime celetista, demonstrando ser possível manter eficiência administrativa sem precarizar relações trabalhistas.
6.2. Plantões Médicos;
Para médicos plantonistas, a caracterização do vínculo empregatício segue os mesmos critérios gerais. O fato de cumprir plantões de 12 horas não descaracteriza por si só a relação de emprego se presentes os demais elementos.
6.3. Especialidades Médicas;
Certas especialidades, pela sua natureza técnica específica, podem ter maior facilidade em demonstrar autonomia profissional, elemento importante para legitimar a contratação via PJ.
Consequências da Pejotização Fraudulenta
7.1. Para o Profissional;
Quando reconhecida a fraude, o profissional tem direito a:
Anotação da CTPS com reconhecimento do vínculo;
Pagamento retroativo de todas as verbas trabalhistas (13º salário, férias + 1/3, FGTS);
Horas extras e adicionais devidos;
Aviso prévio e multa de 40% do FGTS em caso de dispensa;
Contribuições previdenciárias;
7.2. Para a Empresa/Instituição;
As consequências para o empregador incluem:
Pagamento de todas as verbas trabalhistas do período;
Multas e penalidades administrativas;
Responsabilização dos sócios em casos extremos;
Danos à reputação institucional;
Possível responsabilização criminal por fraude (art. 203 do Código Penal);
Medidas Preventivas e Boas Práticas;
8.1. Para Instituições de Saúde;
Estruturação Adequada dos Contratos: Os contratos reflitam prestação de serviços;
Respeito à Autonomia Profissional: Não impor controles de relação empregatícia;
Diversificação da Carteira: Incentivar que o profissional atenda múltiplos clientes;
Documentação Adequada: Manter registros que comprovem a autonomia;
8.2. Para Profissionais;
Análise Cuidadosa: Avaliar se a relação proposta possui genuína autonomia;
Assessoria Jurídica: Consultar advogado especializado antes de aceitar contratos PJ;
Documentação de Evidências: Manter registros de horários, subordinação e exclusividade;
Conhecimento dos Direitos: Compreender quando a pejotização é legítima ou fraudulenta.
Perspectivas Futuras;
9.1. Projeto de Lei do Senado
O senador Fabiano Contarato apresentou o PL 1.675/2025, estabelecendo critérios claros para identificar pejotizações fraudulentas, buscando equilibrar livre iniciativa com proteção social do trabalhador.
9.2. Decisão Pendente do STF
O STF está analisando o Tema 1.389 de repercussão geral, que definirá precedente vinculante sobre a licitude da pejotização, com potencial para pacificar a jurisprudência nacional.
9.3. Posicionamento do Ministério do Trabalho
O Ministério do Trabalho tem intensificado fiscalizações e considera a pejotização "mais grave que a terceirização", alertando para os riscos ao sistema de proteção social.
Conclusão;
A pejotização dos profissionais da saúde representa um fenômeno complexo que exige análise cuidadosa caso a caso. Embora seja possível sua utilização legítima, respeitando-se a autonomia profissional e a ausência dos elementos caracterizadores do vínculo empregatício, sua utilização fraudulenta constitui grave violação aos direitos trabalhistas.
A legislação brasileira, através do artigo 9º da CLT e dos princípios trabalhistas, oferece instrumentos adequados para combater abusos, enquanto a jurisprudência tem se consolidado no sentido de aplicar o princípio da primazia da realidade para identificar fraudes.
Para profissionais da saúde, é essencial compreender que a mera constituição de pessoa jurídica não afasta a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício se presentes na prática os elementos da relação de emprego. Da mesma forma, instituições de saúde devem estruturar adequadamente suas contratações, respeitando a genuína autonomia profissional quando optarem pela contratação via pessoa jurídica.
O debate sobre a pejotização na saúde reflete tensões mais amplas entre flexibilização das relações de trabalho e proteção social dos trabalhadores. Encontrar o equilíbrio adequado é fundamental para preservar tanto a eficiência do sistema de saúde quanto os direitos fundamentais dos profissionais que nele atuam.
A definição final dessas questões dependerá das decisões pendentes do STF e do TST, que estabelecerão precedentes vinculantes para todo o sistema judiciário brasileiro, trazendo maior segurança jurídica a este importante debate.
Fontes consultadas:
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
Lei nº 11.196/2005
Lei nº 9.637/1998 (Organizações Sociais)
Jurisprudência do STF, TST e TRTs





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