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Médica e Saúde

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A judicialização na saúde.

  • Foto do escritor: Ricardo Romano
    Ricardo Romano
  • 10 de jan.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 29 de jan.


Jaleco, estetoscópio e martelo da justiça: A união entre direito e medicina
Conflito entre médico e paciente


A Constituição Federal de 1988, seguindo o exemplo da Organização Mundial de Saúde (OMS), reservou um lugar de destaque para a saúde, tratando-a, de modo inédito no constitucionalismo pátrio, como um verdadeiro direito fundamental. 


Qualificar um direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer consequência jurídica. Pelo contrário, a constitucionalização do direito à saúde acarretou aumento formal e material de sua força normativa, com inúmeras consequências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.  


Aliado a isso, os usuários de serviços médicos, atualmente, mesmo aqueles que provêm de camadas sociais menos afortunadas, principiam a ter uma ideia clara de seus direitos, enquanto pacientes. Não há, propriamente, mudança no comportamento das pessoas em relação aos médicos. Porém, a clara percepção do erro inescusável da imperícia inadmissível e da negligência criminosa impele as pessoas à busca da reparação.


Para se ter uma ideia, no ano de 2011, o Conselho Federal de Medicina, por meio de seu presidente José Luiz Gomes do Amaral, assim se manifestou: 

 

Levantamento do Conselho Nacional de Justiça mostrou que em 20 dos 91 tribunais brasileiros existem mais de 112 mil processos sobre demandas de saúde. Esses dados evidenciam a falta de credibilidade dos sistemas de saúde brasileiros. No âmbito público, a insistência de que tudo se oferece contrasta com o pouco que se tem e a reiterada resistência em encarar a falta de recursos. As indisfarçáveis tentativas de distorcer a realidade por meio da manipulação da informação e interferência na prática clínica criam inconsistências óbvias.3 

 

Atualmente, em recente estudo feito pelo Conselho Nacional de Justiça, que abordou a judicialização da saúde entre os anos de 2015 até 2019, ficou constatado que: 

 

Em 2015, os casos novos totalizaram 322.395 (trezentos e vinte e dois mil trezentos e noventa e cinco) e em 2018 um total de 326.397 (trezentos e vinte e seis mil trezentos e noventa e sete), o maior aumento esteve concentrado na mudança de 2018 para 2019, com o ano de 2019 tendo um total de 427.633. Já em relação aos Tribunais Regionais Federais o ano de 2015 contou com um total de 36.673 e o ano de 2020 com 58.744, sendo este último o ano com a maior incidência de casos novos.

 

Percebe-se, portanto, que, em um curto espaço de tempo, houve um aumento de quase 500% (quinhentos por cento) nas demandas judiciais que envolvem temas voltados à saúde.


 E, depois das operadoras de planos de saúde, clínicas e hospitais, os profissionais de saúde, principalmente médicos, são os mais acionados judicialmente e, também, administrativamente. 


Um estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética, em todos os Tribunais de Justiças Estaduais e no Superior Tribunal de Justiça, verificou que a especialidade que mais é demandada em juízo é a ginecologia e a obstetrícia, seguida pela traumato-ortopedia e pela cirurgia plástica.  


Considerando a relação entre número de profissionais em cada especialidade, 47% dos cirurgiões plásticos respondem a algum processo judicial.

 

Observa-se que devem ser considerados dois principais contextos concomitantes para esse exponencial aumento de processos envolvendo profissionais da saúde. Vejamos. 


O primeiro, consiste em buscar o Poder Judiciário para a resolução de conflitos entre médicos e pacientes, como reflexo de um processo de empoderamento dos pacientes que, na medida em que se tornam conhecedores de seus direitos, fazem uso do direito constitucional de ação, provocando o judiciário na tentativa de resguardo de seus interesses.


Em sentido mais amplo, o desenvolvimento conceitual do empoderamento, desde a década de 1970, tornou-o multifacetado, tendo recebido diversas influências teóricas e políticas. Esse processo inicia-se com os movimentos de autoajuda, passa pelas reflexões da ​​Psicologia Comunitária nos anos 1980 e ganha novos contornos com os movimentos em torno do direito de cidadania nas diversas esferas sociais, entre elas a da saúde, a partir dos anos 1990.


Como processo essencialmente educativo, o empoderamento, visa desenvolver a autonomia do paciente para que este assuma efetivamente sua responsabilidade através de conhecimentos, atitudes e habilidades. Aparece como fundamental na promoção da saúde na Carta de Ottawa (1986), ​para que indivíduos/comunidade assumam o controle dos fatores socioeconômicos, pessoais, ambientais que atingem a saúde.


Aliado a isso, há o aprimoramento legislativo a começar pela Constituição Federal de 1988, coligada ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) em confluência com o Código Civilista de 2002, que colocar o paciente em um patamar jurídico de vantagem perante o profissional da saúde que, por vezes, se sente pressionado a tomar certas condutas pelo simples receio de ser acionado judicialmente. 


O segundo, pauta-se na assimetria da relação médico e paciente, na qual o poder médico de superioridade decisional fez-se presente no decurso da história ocidental da medicina, especialmente a partir dos contornos técnico-científicos e biotecnológicos. ​​Além de significar uma evolução em perspectivas diagnósticas, a inserção da tecnologia, provocou ainda possíveis distanciamentos na relação médico/paciente, uma vez que as novas ferramentas de comunicação limitam o aprofundamento do diálogo entre médicos e pacientes. O fato é que o poder médico se manteve sob o controle advindo do conhecimento produzido em seu discurso – o que perfez ou reforçou uma assimetria entre os sujeitos –, e passou a protagonizar conflitos em âmbito judicial.


​​Assim, visualiza-se busca excessiva pelo Poder Judiciário, na tentativa de encontrar de soluções para os da relação entre médicos e pacientes, resultantes da assimetria de poder/saber e das dificuldades do exercício dos discursos em consideração às falhas no diálogo, que poderiam ser enfrentadas de outro modo. Pode-se notar a conformação de demandas judiciais que poderiam ser evitadas a partir da prévia equiparação do discurso entre médicos e pacientes em uma tentativa de diálogo. Isso possivelmente propiciaria maior compreensão das circunstâncias próprias da medicina, afastadas de qualquer possibilidade de erro médico, mas que podem vir a ser judicializadas.

 

​​Seguido destes dois pilares balizadores da judicialização da medicina, pode-se entender, também, como fatores, considerados importantes no aumento deste fenômeno jurídico, a falência do Estado no investimento à saúde e o aumento indiscriminado de cursos de medicina. 


No primeiro caso, vemos, com o passar do tempo, um Estado à deriva, arreigado pela corrupção, pela ineficiência e burocracia, fazendo com que diversos hospitais, postos de saúdes e afins não tenham o mínimo de estrutura para fornecer ao profissional da saúde o necessário para um bom atendimento ​​e um diagnóstico correto ao paciente, levando, por fim, a uma judicialização.

 

Para se ter conhecimento, no ano de 2019, a saúde perdeu R$ 20 bilhões de reais por força da Emenda Constitucional 95/2016 que alterou o regime fiscal do Brasil, perda essa que só progride com o passar do tempo. 

Na segunda situação, o problema já vem sendo verificado há quase vinte anos. ​Em contrapartida, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo fez um levantamento no qual verificou-se que o Governo Federal, em um período de cinco anos, autorizou a criação de uma escola de medicina por mês. 


Além disso, ficou constatado que: 

 

Segundo um dos levantamentos, a taxa de denúncias por médicos nas escolas com as piores notas no último exame de alunos foi mais do que o dobro da registrada para faculdades com as melhores avaliações. O estudo levou em conta o tempo de trabalho dos profissionais.  

Isso mostra de maneira a não deixar dúvidas que o número de denúncias está sim relacionado com a formação”, afirma Isac Jorge Filho, presidente do conselho. 

Um outro estudo, a avaliação do conselho sobre as condições dos locais em que os estudantes aprendem -hospitais, prontos-socorros, unidades básicas de saúde- mostra que 50% têm infra-estrutura inadequada para a formação dos médicos. 

Para Jorge, que preside o conselho de São Paulo, é o interesse econômico que tem movido a expansão do ensino, uma vez que ter curso de medicina é garantia de grande procura. “Os problemas não só não estão sendo resolvidos, como estão mais graves. Escola não é padaria”, diz ele.


Assim, começa a ficar claro que o estudante, ao optar pelo curso de medicina, não o faz como uma vocação natural, mas como uma opção de sobrevivência futura. Além disso, ainda enfrenta a “baixa remuneração, o que os obriga a ter mais de três empregos simultâneos, cuja consequência é a má qualidade dos serviços médicos, principalmente nos hospitais públicos”. 


Podemos concluir, portanto, que, no modelo tradicional, médico e paciente são alocados em campos opostos e complementares: a figura do médico ocuparia a posição de “ativo”, “poderoso”, “bem-informado” e daquele que está no controle do processo de cuidado; a figura do paciente, portanto, corresponderia à posição de “passivo”, “obediente”, “aceitoso” e “dependente do saber e da boa vontade do médico”.


Contudo, a formação exclusivamente técnica e a hierarquia da relação médico/paciente ficaram para trás. A crescente disseminação do conhecimento e a importância do respeito à autonomia do paciente passaram a surgir como fatores principais na estruturação da prática de saúde. O acesso à informação transforma o paciente em um desafio.  Perdeu-se a relação de subversão e o figural paterno, necessitando de novos meios para criação de uma relação eficaz. 

Observa-se a necessidade crescente de estabelecer uma comunicação mais aberta entre médicos e pacientes que possibilite uma maior qualidade na relação. Em face dessa questão, o primeiro ponto de reflexão é relativo ao comportamento profissional do médico. Este deve incorporar aos seus cuidados a percepção do paciente acerca de sua doença, que possivelmente diverge do modelo clínico, visto que são valores e compreensões próprias daquele caso. Isto não significa que os médicos tenham que se transformar em psicólogos ou psicanalistas, mas que, além do suporte técnico-diagnóstico, necessitam de sensibilidade para conhecer a realidade do paciente, ouvir suas queixas e encontrar, junto a ele, estratégias que facilitem a adaptação ao estilo de vida influenciado pela doença.

 

Os médicos devem estar conscientes dos papéis dinâmicos e importantes que a sociedade do século XXI tanto carece, a fim de atuarem como agentes positivos de mudanças  em  qualquer  situação,  imbuídos  dos  elementos  potenciais  que  lhe  são  prerrogativa, transformando dor em alívio, sofrimento em consolo, doença em reparação, limitação em reabilitação,  iniquidades  em justiça,  perdas  em  possibilidades,  injustiças  em  acertos, ausência em presença fraterna, dúvida em verdade, e tantas outras possibilidades.


Referências 

AMARAL, José Luiz Gomes do. Judicialização da Medicina. Conselho Federal de Medicina, 14 jan. 2011. Disponível em https://portal.cfm.org.br/artigos/judicializacao-da-medicina/. Acesso em 12 abr. 2022. 

ANDERSON, R. M. Patient Empowerment and the Traditional Medical Model: a case of irreconcilable differences? Diabetes Care, Alexandria, v. 18, n. 3, p. 412-415, 1995. 

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 3. ed. São Paulo: Renovar, 1996. 

CAPRARA, Andrea; RODRIGUES, Josiane. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciência & saúde coletiva, v. 9, n. 1, p. 139-146, 2004. 

CARVALHO, S. R. Os múltiplos sentidos da categoria “empowerment” no projeto de Promoção à Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 1088-1095, 2004. 

CNJ. Relatório Judicialização e Sociedade – Ações para acesso à saúde pública de qualidade. Conselho Nacional de Justiça, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/Relatorio_Judicializacao-e-Sociedade_2021-06-08_V2.pdf. Acesso em 12 abr. 2022. 

CNS. Saúde perdeu R$ 20 bilhões de reais por força da Emenda Constitucional 95/2016. Conselho Nacional de Saúde, 28 fev. 2020. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016. Acesso em: 13 abr. 2022. 

CREMEPE. Conselho liga boom de curso a erro médico. Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco, 13 nov. 2005. Disponível em: https://www.cremepe.org.br/2005/11/13/conselho-liga-boom-de-cursos-a-erro-medico/  Acesso em: 13 abr. 2022. 

DA PAIXÃO NOBRE, Francyele Alves et al. Empoderamento e promoção à saúde: uma reflexão emergente. Brazilian Journal of Health Review, v. 3, n. 5, p. 14584-14588, 2020. 

KFOURI, Miguel Neto. Responsabilidade Civil do Médico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. 

MIGUEL, Kfouri Neto. Responsabilidade Civil do Médico. 10. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2019. 

OLIVEIRA, Camila Vasconcelos de. Judicialização da medicina no Brasil: uma análise crítico-propositiva de um problema persistente sob a ótica da Bioética de Intervenção. Brasília, 2017. 

SARRIS, Andrey Biff et al. O papel do médico na visão da sociedade do século XXI: O que realmente importa ao paciente? Visão acadêmica, v. 18, n. 1, 2017. 

VASCONCELOS, Camila. Responsabilidade médica e judicialização na relação médico-paciente. Rev. Bioética., v. 20, n. 3, p. 389-96, 2012.

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